CAPÍTULO I
Huhh. Sara gritou surdamente de dor ao sentir um dos seus piercings da orelha esquerda ficar preso em algo.
Já passava das dez e estava atrasada para o que gostava de chamar o seu Day Job por isso entrou estouvada no metro e enganchou um dos seus brincos - na verdade brincos era como dantes se chamava, mas agora, em 2008, pleno século XXI, que começou ainda no século XX, já tudo eram piercings, por ser mais cool - no cachecol de um rapaz alto e magro, de sobretudo e óculos, que ia também a entrar no metro nesse momento.
- Desculpe - disse ele um pouco envergonhado.
Ao que Sara respondeu: -Obrigada - enquanto compunha o cabelo com um gesto rápido e algo embaraçado pela situação.
Sentaram-se frente a frente nos dois últimos lugares da carruagem.
Talvez não fossem os últimos, mas como ambos se queriam sentar rapidamente para deixarem de ser observados pelos restantes passageiros, sempre ávidos de algo que quebre a rotina e que os faça levantar o nariz dos jornais gratuitos que devoram de manhã, teimando em ler aos três e quatro diferentes só porque são oferecidos, apesar de as notícias serem praticamente idênticas quando não mesmo exactamente iguais, para eles pareceu-lhes a tábua de salvação mais próxima.
Sara dedilhou rapidamente uma SMS para a sua amiga do trabalho Raquel: "Estou atrsd. Avisa boss. Tj bjos".
Há já largos anos que os jovens desistiram de acentuar e de escrever em português correcto as SMS, de tal forma que isso até já se pegou aos não tão jovens e chegou ao mundo empresarial como uma prática tolerável, sendo politicamente incorrecto corrigir alguém pelo facto de abreviar ou não acentuar as palavras nas SMS.
Temos uma língua completamente cheia de galicismos para os quais nunca sequer procurámos uma alternativa em português - e este livro, assumo, é um exemplo desse problema - ou partimos do princípio de que não existe. Quantas pessoas sabem, por exemplo, que existe uma palavra portuguesa para "stationary"? A palavra é estacionário.
Mas afinal o que temos nós feito para defender a língua portuguesa ao longo dos anos?
Aquela que é a 8' mais falada do mundo e que anda na boca de mais de 200 milhões de pessoas? Oferecer jornais diários?
Achamos os espanhóis uns parolos por não saberem falar inglês, dobrarem os filmes e as séries e quererem sempre falar em espanhol em qualquer parte do planeta.
Achamos ridículo o facto de os brasileiros fazerem versões com letra portuguesa das músicas do TOP norte-americano. E que fazem os portugueses? Ahh o português é poliglota e, na sua vocação natural para o turismo, fala espanhol perfeitamente - tá claro -, inglês, francês, arranha alemão e ainda arrisca o italiano.
Mas também os há que, não falando qualquer língua para além do português e, perante um turista que teima em não falar língua de gente, resolve o problema falando muito alto e pausadamente, porque o português é uma língua que se fala rápido e para dentro - pensam - e portanto assim ele vai percebê-los.
Mas voltando às nossas personagens, Sara procura desviar o olhar do tal rapaz a quem tinha ficado "enganchada", mas, quando o apanhou a olhar pela janela do metro, tirou‑lhe a pinta e até achou que não estava mal. Arranjava-se bem, como ela gostava de dizer.
Escapou-lhe, contudo, que o rapaz não estava propriamente interessado na fascinante paisagem de betão entre paragens do metro, ainda que por vezes grafitada, mas sim no reflexo de Sara na janela e, mais concretamente em "tirar-lhe as medidas".
Afinal, - pensou ele - já que tinham tido um "encontro imediato" porque não aproveitar para meter conversa? E aquele cabelo muito ruivo e os vários brincos nos ouvidos despertavam-lhe imensa curiosidade.
Não estava habituado a conviver com raparigas tão fashion, tão urban wear, hip-hop e outros adjectivos cool que já tinha ouvido.
Na verdade, tirando a louca da vizinha do lado que gostava de ouvir Tunas Académicas em altos berros - a Marlene - e que nas duas últimas passagens de ano havia abancado lá em casa, dando um valente andamento ao barrilzito de cerveja e acabando por dormir na sua cama, com ele, do que restavam, felizmente, vãs memórias pela manhã, pelo meio da dor de cabeça, o nosso jovem não estava efectivamente habituado a conviver com raparigas.
Estava agora com 23 anos. Tinha acabado de sair da Faculdade de Arquitectura, em Lisboa onde se tinha refugiado dos seus pais vai para cinco anos. Deixou Gouveia para trás, mais propriamente Rio Torto, e uma quase certa emigração para a Suiça para conseguir trabalho suficiente para subsistir, e veio perseguir um sonho de menino. Ser arquitecto. E conseguiu, fazendo o curso em cinco anos.
Sara não costumava sair de casa sem óculos escuros, os seus shades, "faça chuva ou faça sol" como ela própria dizia. Na verdade era bastante tímida fora do trabalho, dos dois, e a sua aparência algo gótico-agressiva funcionava como uma máscara social, uma barreira de protecção contra abordagens fáceis por parte dos outros, o que lhe permitia exercitar a sua timidez comodamente. Os óculos escuros faziam parte dessa máscara para esconder o olhar que muito denuncia. Por isso procurava não fitar o viajante da frente. Aliás, procurava não fitar ninguém.
O jovem arquitecto ia gostando da estética do que via, do conjunto de cores, dos lábios, do cabelo, do sorriso, da pele, do perfume, da roupa, do decote, das botas, dos piercings, dos anéis, do cinto, da mochila, enfim... da Sara.
Tinha o impulso incontrolável de se apaixonar por quem lhe desse mais de 2 segundos de atenção e isso transformava-o – pensava – num homem com um charme ao nível do Sean Connery, George Clooney, um desses, pois tornava-se extremamente afável, tentava ser divertido, cavalheiresco.
Deste vez pareceu-lhe diferente. Sentiu uma aura envolvente, muito superior a uma paixoneta ou um fascínio relampejante.
Tirou um dos seus cadernos da pasta de documentos que transportava para todo o lado, um lápis, e começou a rabiscar.
Olhava de quando em vez para Sara, que lhe facilitava a tarefa pelo facto de continuar sem conseguir olhar para ele.
Pouco tempo depois aproximava-se a estação do Saldanha.
Rasgou delicadamente um pedaço da folha onde tinha estado a rabiscar, levantou-se, largou o papel no colo de Sara e levantou-se disparado para se ir colar junto à porta.
Sara ficou atónita. Pegou no papelito para descobrir um retrato seu, feito a carvão com um lápis normal. Estava muito bem feito e arrancou-lhe um doce sorriso.
Em baixo lia-se “Jaime. 967009000”. Sara sorriu ainda mais. Achou muito engraçada a atitude de Jaime – agora sabia o seu nome – e logo o rotulou de “querido”.
[Excerto da autoria de Bruninha - Editado]
Esquecendo todas as directivas que recebeu ao longo da sua - ainda- curta existência relativas ao contacto com estranhos que lhe tinham sido incutidas desde pequena por pais, avós e adultos em geral, pensou para consigo: "Porque não?" E arrancando um pedaço de papel do bloco que invariavelmente carregava consigo, forrado com imagens de bandas e músicas que só ela conhecia, e, naquilo que lhe pareceu ser letra de primária, escreveu: "Sara: 907589562".
Trocaram mais um sorriso e, apressadamente, Sara saiu em Entrecampos para se dirigir para o trabalho...
Durante todo o percurso que fez a pé sorria, olhando para o retrato a carvão... Da sua infantilidade, da situação que só vira em filmes antigos que a sua mãe via aos Domingos sentada no velho cadeirão da sala, deliciando-se a imaginar que futuro teria - se é que teria algum - aquela relação preenchida de incógnitas.
A verdade é que não sabia nada sobre ele! Nem a idade, nem onde trabalhava, nem onde morava, NADA! Só mesmo o nome. Jaime.
Tudo o mais se resumia a um enorme ponto de interrogação e a um número mal escrevinhado num pedaço de papel... O melhor seria esquecer tudo e concentrar-se na reportagem que tinha que preparar hoje no jornal "Dia Gnóstico" em que fazia o seu tão almejado estágio de jornalismo.
Amanhã era outro dia...
CAPÍTULO II
domingo, 9 de setembro de 2007
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